As categorias da arte em Calvino

João de Almeida Santos

«Os que estão habituados a julgar pelo sentimento não compreendem nada das coisas do raciocínio, porque eles querem logo penetrar de imediato, não estando habituados a procurar os princípios. E os outros, pelo contrário, que estão habituados a raciocinar com princípios, nada compreendem das coisas do sentimento, procurando nelas princípios e nada podendo ver de imediato».
  
Pascal, «Pensées», I. 3. (Le livre de Poche, 1979, p. 4)

Italo Calvino (1923-1985) fora convidado em 1984 a fazer um ciclo de conferências na Universidade de Harvard, as famosas «Charles Eliot Norton Poetry Lectures». Da preparação destas conferências resultou um livro, póstumo, que, sob a responsabilidade de sua mulher Esther Calvino, foi publicado pela Garzanti, em 1988, com o título de «Lezioni americane, sei proposte per il prossimo millennio» («Six memos for the next millennium»). Do livro constam cinco reflexões sobre os valores, qualidades, especificidades ou categorias essenciais da literatura, a salvaguardar para o milénio que já se iniciou: «leveza» (leggerezza; lightness), «rapidez» (rapidità; quickness), «exactidão» (esattezza; exactitude), «visibilidade» (visibilità; visibility), «multiplicidade» (molteplicità; multiplicity). A sexta seria a categoria da «consistência» (consistency) e referir-se-ia a Bartleby, de Melville.

     1. Visibilidade: «Stiamo correndo il rischio di perdere una facoltà umana fondamentale»: «pensare per immagini»

Ponto de partida de Calvino é a questão do destino da literatura e dos seus valores fundamentais perante a emergência daquela civilização que se indica com o nome «pós-industrial». O perigo é o da perda de uma «faculdade humana fundamental», «pensar por imagens», sob o colossal dilúvio de imagens prefabricadas, produzidas por essa tão moderna quão sufocante «civilização da imagem». «Antigamente, diz Calvino, a memória visiva de um indivíduo era limitada ao património das suas experiências directas e a um reduzido repertório de imagens reflectidas pela cultura: a possibilidade de dar forma a mitos pessoais nascia do modo como os fragmentos desta memória se combinavam entre eles em aproximações inesperadas e sugestivas» (Calvino, 1988: 91). Hoje, o perigo reside na impossibilidade de continuar a poder «evocar imagens em ausência». Trata-se, pois, de defender a centralidade do valor da visibilidade, a genuinidade do «cinema mental» da nossa imaginação (1988: 83), contra essa «chuva ininterrupta de imagens» com que os mais potentes media inundam o mundo e o multiplicam através de uma fantasmagoria de jogos de espelhos (1988: 58). Trata-se, em suma, de salvaguardar essa capacidade de pensar por imagens e de pensar imagens, de evocar imagens em ausência e de as suscitar através da linguagem discursiva. Pelo que a máxima é a do Dante da Divina Comédia: «poi piovve dentro a l'alta fantasia» (Alighieri, 1969: 181) e não a de uma videocracia em expansão universal: chove fantasia prefabricada, confeccionada em condensados audiovisuais. A imaginação literária é, bem pelo contrário, complexa e reflexiva, já que para a sua formação concorrem diversos e sofisticados elementos ou mecanismos que interagem criativamente com o mundo: a observação directa do mundo real, o processo de abstracção, condensação e interiorização da experiência (de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento), o mundo figurativo transmitido pela cultura nos seus vários planos, a transfiguração fantasmática e onírica (Calvino, 1988: 94).

     2. Leveza: «La mia operazione è stata il più delle volte
una sottrazione di peso»

É claro que a visibilidade, no complexo processo discursivo de reconstrução da essencialidade do mundo da vida, está ligada por um fio directo a esse outro valor da leveza, aquela mesma que se tornava possível a Perseu pela visão indirecta, através do espelho de Atena, da cabeça petrificante da Górgone, da Medusa, ou, se quisermos, desse fardo pesado que uma visão imediata, não mediada, das coisas, dos eventos, do mundo da vida arrasta necessariamente consigo.
A operação literária de Calvino consiste precisamente nisso: na subtracção de peso à imediatidade opaca, inerte e pesada de um mundo condenado à petrificação, justamente por esse domínio da imediatidade, como a visão directa da cabeça da Medusa. A fuga a esta visão imediata é já por si mesma um acto de liberdade e, por isso, uma subtracção de peso à existência, uma oposição ao «inelutável peso do viver». Não residia a força de Perseu na sua recusa da visão directa? De que lhe serviriam as sandálias aladas se alguma vez olhasse directamente a cabeça da Medusa que sempre trazia consigo? A dádiva de Atena, deusa da sabedoria e da inteligência, o espelho, permite-lhe subtrair-se a essa visão directa petrificadora, portadora de peso, de opacidade, de inércia, afinal, características imediatas do mundo. A imediatidade constringe e, por isso, acresce peso ao viver. Há, pois, que olhar para o mundo de forma indirecta, mediada, para aceder à sua dimensão mais essencial, como, afinal, faz a própria ciência: «hoje cada ramo da ciência parece querer demonstrar que o mundo se funda sobre entidades subtilíssimas: como as mensagens do ADN, os impulsos dos neurónios, os quarks, os neutrinos vagantes no espaço desde o início dos tempos»; depois, a informática, o software, os bits sem peso de um fluxo de informação que corre em circuitos sob forma de impulsos electrónicos. O ideal estético da leveza parece, pois, encontrar um autêntico suporte científico e ontológico capaz de confirmar a sua essencialidade. E não só na era pós-industrial ou pós-moderna. Mesmo nas suas origens mais remotas, como no tempo de Lucrécio ou de Ovídio, a leveza era um modo poético e escrito de ver o mundo que se fundava quer na filosofia quer na ciência. Lucrécio (De rerum natura), em Epicuro. Ovídio, em Pitágoras (1988: 9-12).
A leveza possui, pois, uma dimensão mais profunda do que o simples estilo narrativo, a textura verbal ou a pregnância das imagens figurativas. Possui uma dimensão ontológica onde se apoia mais profundamente esse «dispositivo antropológico que a literatura tende a perpetuar»: o nexo, qual constante antropológica, entre levitação desejada e privação sofrida (1988: 28). Daqui, a «função existencial» da literatura: «a procura da leveza como reacção ao peso do viver», como na tristeza que se transforma em melancolia ou no cómico que se torna humour, quando se dissolvem os últimos resíduos da opacidade corpórea (1988: 21).

     3. Rapidez: «Il discorrere è come il correre e non come il portare» (Galileu)

Valor gémeo da leveza é a rapidez, se ambas coexistem num Perseu de pés alados como um dos seus dois deuses protectores, Hermes (e Atena). Hermes-Mercúrio é, aliás, o patrono de Calvino: «Mercúrio, com as asas nos pés, leve e aéreo, hábil e ágil, versátil e desembaraçado, estabelece as relações dos deuses entre si e com os homens, entre as leis universais e os casos individuais, entre as forças da natureza e as formas da cultura, entre todos os objectos do mundo e todos os sujeitos pensantes. Que melhor patrono poderia escolher para a minha proposta de literatura?», conclui Calvino (1988: 50‑51). Como se compreende, a rapidez de Hermes-Mercúrio serve à leveza do discurso, porquanto exerce a função mediadora entre o universal e o individual sem acréscimo de meios, de modo instantâneo. «O meu trabalho de escritor, diz Calvino, foi orientado, desde o início, a seguir o fulmíneo percurso dos circuitos mentais que capturam e ligam pontos longínquos do espaço e do tempo» (1988: 47). O carácter fulmíneo, instantâneo, «sem passagens» de um circuito mental é, de facto, atributo divino. E não só do deus da mitologia greco-latina Hermes-Mercúrio. O raciocínio instantâneo é também para o copernicano Salviati, do galileiano Dialogo sopra i due massimi sistemi de mondo (1632), próprio da mente divina; mas, de qualquer modo, a rapidez é, em Galileu (1564-1642), essencialmente um valor anti-académico-metafísico representado, sobretudo, por um Sagredo antiptolemaico e de «velocíssimo discurso». «Il discorrere, diz Galileu em il Saggiatore (1623), è come il correre, e non come il portare». Rapidez, todavia, não se identifica com imediatidade, ou melhor, com visão imediata, que é fonte de peso e opacidade, mas com processo lógico relacional que estabelece conexões essenciais entre elementos diversamente colocados no espaço e no tempo. Tal como o discurso científico, mas com aspiração ao carácter absoluto e instantâneo da mente divina. E, depois, a rapidez não é modelada exclusivamente segundo os processos relacionais e dedutivos da ciência moderna e a dimensão fulmínea da mente divina. Ela não é só processual, mas também, como dizer, comportamental ‑ «as fadas são muito rápidas nas suas tarefas» ‑ e ôntica (ou mesmo ontológica): «a rapidez da sucessão dos factos dá uma sensação de inelutável» (1988: 35).
A rapidez de que fala Calvino envolve duas ordens da narrativa: a ordem processual, no plano da captação discursiva da essencialidade das relações ‑ e nisto cruza-se com o valor da exactidão ‑ que investem a narrativa; a ordem da realidade, ôntica e ontológica, no plano do conteúdo, do evento propriamente dito, do «objecto» descrito. E aqui toca-se a essência dual deste valor: «o tema que aqui nos interessa, diz Calvino, não é a velocidade física, mas a relação entre velocidade física e velocidade mental» (1988: 42), ou seja, a relação entre o tempo do evento ou do objecto narrado e o tempo processual ou narrativo, ou, com Galileu, a relação entre o correr e o discorrer.

4. Multiplicidade: «Quella che prende forma nei grandi romanzi del XX secolo è l’idea d’una enciclopedia aperta»

Que esta relação seja determinante na concepção de Calvino está a prová-lo o conceito interactivo da relação palavra-mundo: «seguimento perpétuo das coisas, adequação à sua variedade infinita» (1988: 28). Deste conceito resulta um outro valor essencial para o próximo milénio: o da multiplicidade. Um valor que está mais do lado da sensibilidade, da irracionalidade, do caos, da complexidade irredutível do mundo da vida, da diferença, das várias ordens do saber e dos vários códigos a que a literatura dará unidade «numa visão multíplice e facetada do mundo», em particular agora que «a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam sectoriais e especialísticas». Um valor que, de algum modo, sirva de contraponto à tendência homológica dos outros valores e introduza na obra de arte a diferença não só sensível, mas também lógica e, assim, evite a irrupção da unilateralidade narrativa, estilística e interpretativa. Calvino fala dos grandes romances do séc. XX ‑ de A Montanha Mágica, 1924, de Thomas Mann, considerada, não sem razão, «a mais completa introdução à cultura do nosso século» (1988: 113) ‑ como de enciclopédias abertas, múltiplas em métodos interpretativos, modos de pensar, estilos de expressão e animadas por uma força centrífuga interna que garante a sua irredutibilidade a um só centro e a uma potencial unilateralidade interpretativa. Mas já mesmo antes deste século era visível a vocação enciclopédica da literatura: Goëthe (1749-1832) queria escrever um «romance sobre o universo»; Novalis (1772-1801) um «livro absoluto»; Alexander von Humboldt (1769-1859) escreveu «Kosmos» (4 vols., 1845-1858); Mallarmé (1842-1898) preparava «um livro absoluto como fim último do universo»; Flaubert (1821-1880), que queria escrever «un livre sur rien», afinal, acabou por escrever o «romance mais enciclopédico que jamais foi escrito», Bouvard et Pécuchet (publicado em 1881).
«O conhecimento como multiplicidade, diz Calvino, é o fio que liga as obras maiores, tanto do que chamamos modernismo quanto do que chamamos postmodern, um fio que (...) gostaria que continuasse a desenvolver-se no próximo milénio» ( 1988: 113).

     5. Exactidão: «Il cristallo, con la sua esatta sfaccettatura e la sua capacità di rifrangere la luce, è il modello di perfezione che ho sempre tenuto come un emblema»

A multiplicidade temática, de estilo, interpretativa, a força centrífuga que anima o grande romance moderno ou pós-moderno não seriam, todavia, esteticamente realizáveis se não se conservasse um outro valor-guia fundamental: a exactidão. Valor tanto mais precioso quanto maior for a «perda de forma» que se constatar na vida. Esta exactidão literária, sob o pressuposto do valor estrutural da multiplicidade e da diferença, e precisamente por isso, define como normas imperativas: a) «um desenho bem definido e bem calculado da obra»; b) a precisão da linguagem como léxico e como realização das «nuances» do pensamento e da imaginação; c) «a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis», numa palavra, icásticas (1988: 57). Mesmo onde o tema, o objecto, é o subtil sentimento do indefinido, do indeterminado, do vago, portanto, onde parece ser de regra uma intencional indefinição ou indeterminação da linguagem, é precisamente aí que a exactidão se torna imperativa: «o poeta do vago pode ser só o poeta da precisão» (1988: 61). Da precisão como, por exemplo, Jorge Luís Borges: exacto na imaginação e na linguagem segundo a rigorosa geometria do cristal e a abstracção de um raciocínio dedutivo (1988: 115); ou como Georges Perec, para quem «a exactidão terminológica era a sua forma de posse» (1988: 119). De posse, obviamente não proprietária, mas originária e criativa, enquanto essa posse é vista não como apropriação, mas como descoberta, e não física, mas mental, precisamente no sentido em que «a palavra liga o indício visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil ponte de acaso lançada sobre o vazio» (1988: 74). A aproximação simbólica é, assim, tanto mais forte ou significativa quanto mais exacto for o registo. Por isso mesmo, é a exactidão que melhor pode dar o sentido de uma forte presença do criador no mundo da vida, se essa exactidão estiver ao serviço da ordem multíplice do mundo da fantasia e da agilidade do «poeta-filósofo que se eleva sobre o peso do mundo, demonstrando que a sua gravidade contém o segredo da leveza» (1988: 13).

Estas seriam as palavras que Calvino escolheria se devesse formular um «símbolo augural» para o novo milénio que já começou. E, como se vê, nele teria um posto central a «leveza», qual valor libertador do peso, do ruído, da rispidez dos corpos opacos e dos resíduos «enferrujados» de uma civilização do consumo prisioneira do círculo vicioso da imediatidade. A defesa deste e dos outros valores não implica, para Calvino, uma real desvalorização dos seus opostos. É, simplesmente, uma escolha claramente assumida e formulada. De resto, nesta escolha Calvino não está só. E não apenas na literatura, se é verdade que um dos mais famosos arquitectos italianos, Renzo Piano, o arquitecto do Beaubourg, dos espaços arquitectónicos da música de Luigi Nono e do fabuloso projecto do aeroporto insular de Osaka, põe no centro do seu conceito de arquitectura precisamente esse conceito calviniano de leveza, daquela leveza das suas «città invisibili», não só pela compreensível razão da funcionalidade ou pelas ilimitadas potencialidades do software, mas também, ou sobretudo, pelo valor estético intrínseco do conceito, no exacto sentido em que Calvino o definiu. (@Jas2011)